Mais do que convidar a todos para nove dias de emoção, encantamento e reflexões, a abertura do Festival de Dança de Londrina 2023 trouxe, no último sábado (7), uma mostra de como são profundas e vigorosas as raízes da cultura popular brasileira. Com o espetáculo “Mestiço Florilégio”, os multiartistas Antonio Nóbrega e Rosane Almeida conduziram o público a uma viagem de dança, música, humor, poesia e imagens, mostrando, acima de tudo, a grandiosidade da arte presente nas diversas regiões do País. No dia seguinte, ao receberem jornalistas e pesquisadores para uma entrevista, ambos falaram da dedicação de uma vida ao universo cultural brasileiro e da importância de preservá-lo.
Nóbrega revelou que foi ‘fisgado’ pela dança por seu aspecto híbrido. “Quando comecei a me relacionar com os artistas populares, a dança teve uma atração muito grande sobre mim. Eu nem tinha história com este tipo de manifestação, mas vendo aqueles homens executarem aqueles passos, do caboclinho, do maracatu, do cavalo marinho (nome que se dá ao reisado na zona rural da Mata Norte-pernambucana), me encantei, e coloquei meu corpo a serviço daquele aprendizado.”
Em princípio, contou, nem sabia como manejar aquele material que tinha assimilado, o que o fez procurar uma maneira de sistematizá-lo – trabalho ao qual tem se dedicado até o presente, com o objetivo de organizar as bases técnicas daquilo que poderíamos chamar de uma “dança brasileira”. “De lá para cá eu venho tentando esta sistematização, e me sinto gratificado com as conclusões a que cheguei, tanto que em breve devo apresentar um trabalho que traz esta maneira de ver uma linguagem brasileira de dança a partir das referências populares e com apoio das técnicas da cultura em geral da dança”, afirmou.
Para o artista, que completa em 2023 cinquenta e um anos de carreira e quarenta anos de atuação junto a Rosane Almeida em vários espetáculos, a nossa dança popular tem uma característica própria: os impulsos corporais. “O repertório de movimentos que existe nas diversas danças ou manifestações cênicas populares é muito grande. Por exemplo, a capoeira tem uma imensa riqueza, assim como o frevo, o samba. Temos um universo de passos, movimentos, meneios, saracoteios, gingados, quebradas, quedas, caídas e descaídas, há uma reunião destes movimentos fora dos seus contextos folclóricos, como se fosse um léxico. O que este léxico tem em comum? Os impulsos corporais que vêm de fora do tempo tônico, do tempo divisível, com tal força que se poderia dizer que é uma característica da nossa dança”, defendeu Nóbrega, comparando esta característica à definição “música sincopada”, cunhada pelo poeta e musicólogo Mário de Andrade.
Fruto de elaboração – Para o instrumentista, cantor, dançarino e ator, que começou sua carreira na música clássica e enveredou para a arte popular pelas mãos de Ariano Suassuna, que o convidou a integrar o Quinteto Armorial – grupo precursor na criação de uma música de câmara brasileira de raízes populares -, é um erro achar que estas são manifestações “espontâneas”. “Um passo de dança ou um verso de um cantador é fruto de uma reserva cultural que, além de longeva, é muito bem estruturada. Por exemplo, quando faço os passos do cavalo marinho, cada um deles está interligado entre si. Há uma estrutura que permeia aquele universo. É como se uma matriz muito simples, ao ser visitada por um passista, fosse provocando naquele dançarino a sua amplitude. Tudo o que fazemos, com a continuidade, torna-se cada vez mais elaborado”, afirmou.
Por esta capacidade da arte de fornecer ferramentas de cognição é que ela é tão importante, segundo Antonio Nóbrega, no processo do ensino-aprendizagem. O artista lembra que para executarmos um passo com perfeição, com movimentos exatos, há uma imersão no universo da cognição. “Acredito que o exercício da arte, seja por meio da poesia, da dança ou da música, à medida em que internalizamos e criamos vínculos mais complexos, abrimos as possibilidades de conexões. Na medida que eu tenho regras, estruturas, eu tenho que ter atenção. Mas também há emoção, uma mensagem, há algo a dizer. Acho que é este ponto de ‘conflito’ que é extremamente educador.”
Já Rosane Almeida destacou que só na arte estão determinadas respostas que o ser humano precisa. “O que fazemos é dar nó numa corrente que diz respeito à sensibilidade das pessoas. Entendo que há uma categoria de pessoas que têm determinadas necessidades para as quais o modelo estabelecido pelo capitalismo, em que tudo tem que partir e terminar no capital, não é suficiente para abastecer as nossas funções sensíveis, o nosso estado emocional, não nos traz determinadas respostas que precisamos. E a arte é um lugar maravilhoso para isso acontecer”, defendeu, para na sequência criticar a cultura do desestímulo ao pensar. “Querem nos fazer acreditar que está tudo pronto, que você vai comprar, que vai se apropriar daquilo e que vai poder refletir.”
Transformar para aprender – Ao lembrar que a arte supre a necessidade fisiológica das pessoas de se expressarem, a artista falou da importância das experiências físicas na educação. “Quando o brincante constrói o seu manto, o seu chapéu, a sua máscara, está vivenciando ali o aprendizado. Materializando algo onde ele pode se enxergar. E a gente tirou tudo isso da educação. A gente vai e compra pronto, faz projeto para conseguir mais facilidade de ter, sem olhar nossos recursos para desenvolver a capacidade de transformar o que temos em mãos: pegar um cabo de vassoura e transformar num mastro de dança, numa baqueta de alfaia, isso é uma experiência física, e tudo isso nos foi retirado dentro da sociedade de consumo, cujo objetivo final é transformar absolutamente tudo em capital, inclusive as relações humanas”, observou.
Rosane enalteceu a curadoria do Festival de Dança por trazer para a programação de espetáculos linguagens que se comunicam entre si, e chamou a atenção para o perigo de uma sociedade segmentada. “É muito mais fácil dominar algo segmentado do que algo unido. Enxergar o todo é uma tarefa do ser humano, esta é nossa missão, qualquer outra coisa fora disso estamos perdendo tempo, porque o que precisamos aprender aqui é existir dentro desse todo. Isso dá muito trabalho. Mas à medida em que segmentamos, separamos também nossos discursos, nossas vocações, nosso potencial. Tudo isso em função de uma ideia de poder, porque no final das contas o ser humano gosta mesmo é de tocar, de dançar, de brincar, de falar. É disso que a gente gosta. É nesse lugar que a gente pode estar inteiro.”