Festival de Dança de Londrina 2023
Festival 2023
Ventos de um festival a lufar vida
É urgente sentir. É imprescindível superar velhas formas de existir para inventar sentidos. A frase mobilizadora do Festival de Dança de Londrina 2023 é intencionalmente ambígua. No alvorecer de um novo tempo, após a pandemia que nos separou e o salto virtual que nos uniu em simulacro, encontramo-nos, enfim, uns diantes dos outros e intimamente perguntamos: em que parte do caminho abandonamos a vida? Como resgatar o seu valor e o seu sabor?
O sintoma mais evidente desse anestesiamento está em dados estatísticos de uma sociedade adoecida e medicada em faixas cada vez mais jovens. Está também na hostilidade das relações humanas, que começa nos efeitos reativos das redes sociais e termina na violência física e simbólica praticada no cotidiano. O ano de 2023, quando definitivamente concretizamos o retorno a um cotidiano transformado, mostrou as consequências deste fenômeno no ambiente que deveria ser o cerne de valores da convivência, da diversidade e do humanismo: a escola.
Para além do desrespeito contra professores e da rivalidade entre colegas, os brasileiros vimos multiplicarem-se ataques no âmbito escolar, tanto por agressores de dentro quanto de fora dos colégios. É o reflexo cada vez mais próximo de um fenômeno que se tornou rotineiro em países como os Estados Unidos, que viram triplicarem tiroteios em escolas no ano passado, em relação ao período letivo anterior. De acordo com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em 2022, após o retorno da pandemia, registrou-se um aumento de casos de violência no âmbito educacional na faixa de 48,5% se comparado ao mesmo período de 2019.
O tema tem sido pauta de debate nos três poderes e em outras esferas, e as soluções rápidas – como subir os muros, envolvê-los de serpentinas, instalar portas detectoras de metais e aumentar a circulação de policiais entre estudantes –, por mais que garantam uma sensação de conforto imediata não resolvem efetivamente uma situação cujas causas são profundas e estão enraizadas em uma sociedade que constrói diuturnamente, sem se dar conta disso, sua autodestruição.
O Festival de Dança 2023 traz como norte curatorial a reflexão sobre como as artes – especialmente as artes vivas e da presença (a dança, o teatro, a performance) – são fundamentais no indispensável ato de revalorizar a vida, de resgatar os sentidos do corpo, de reconhecer a alteridade e de planejar utopias coletivas e sustentáveis que nos salvem enquanto humanidade neste momento desafiador.
Os espetáculos e ações artísticas nacionais e internacionais que organizamos com cuidado e paixão nestes nove dias são pontos de luz que esclarecem caminhos, direções, possibilidades de sentir. São ventos, que, como na nossa arte-tema, espalham sementes, eriçam os pelos, arrepiam a pele. Tais reflexões estão nos palcos, mas também além deles, no amplo espaço suspenso que o Festival suscita enquanto vige: no burburinho do público nas antessalas dos teatros, nos textos do catálogo, nos debates da imprensa, nas nossas redes sociais.
Ao fim de cada espetáculo, professores da plateia serão entrevistados para contribuírem com opiniões sobre como a arte pode engendrar caminhos no ensino-aprendizagem. Trata-se do quadro “Mestres em movimento”, cujos vídeos serão postados nos canais oficiais do evento. Como todas essas experiências estéticas e teóricas podem, afinal, servir para construir uma ponte real, concreta e duradoura entre arte e educação, repensando, inclusive, fluxos transitáveis de investimento nestas áreas pelo poder público? Nossa intenção é encontrar respostas-sementes. Plantá-las para uma primavera-futura repleta de cores, odores, sabores, sentidos.
Esta edição do Festival de Dança se coloca ainda como um libelo contra a redução ou extinção das disciplinas de artes e outras humanidades da educação básica no Paraná, como se vem acenando nos últimos tempos. Igualmente, convoca a sociedade a refletir, a partir de efeitos práticos, sobre os impactos da chamada plataformização do ensino de literatura e de língua portuguesa no Estado, com uso obrigatório de sistemas digitais homogeneizadores.
Jamais o pensamento criativo, crítico, abstrato e fora de modos previsíveis de existência foram tão necessários quanto hoje. O “sentir” e a “invenção de sentidos” sempre foram e serão dons humanos que nenhuma inteligência artificial ou business intelligence será capaz de forjar. E sopram novas perguntas: O que, em realidade, nos afeta? Quais os rumos dos vetores da verdadeira promoção humana? O que forma de modo profundo a sensibilidade?
Rodando saias e braços para disparar nosso vendaval, os mestres Antonio Nóbrega e Rosane Almeida. Eles trazem neste “Mestiço Florilégio” o desabrochar de um Brasil potente, encorporado, oral e real. O país da cultura popular que anuncia para o futuro, no seio da sua ancestralidade mestiça, formas efetivas de transmitir saberes. Descoberta que está também no Paulo Freire e em outros educadores evocados em “Ledores no Breu”, da Cia. do Tijolo, um alerta sobre o perigo dos diferentes modos de analfabetismo. Ou ainda na nossa saudosa artista-ensinadora Carina Corte, que desenvolveu o projeto Faces de Londrina, transformando as vidas de tantas crianças periféricas, hoje profissionais da área ou adultos de afinada sensibilidade – muitos dos quais estarão, com seus professores, em “A bênção do grande urubu”.
Reflexões sobre a infância, tempo-espaço dos primeiros lampejos para a formação de adultos conscientes, perpassam o espetáculo “Memória de Brinquedo” e a suíte de “Dom Quixote”, uma ode à imaginação – ambos da Curitiba Cia. de Dança. A criança também é o foco de três “Multidançarinas” da terra a ensinar que todos os corpos e coreografias são válidos em um mundo que, para ser mais interessante, precisa somar a beleza das diferenças. E, por falar em diversidade, o “Dança Londrina”, em mais um ano, faz do palco do Teatro Ouro Verde um caleidoscópio de trabalhos filiados a diferentes estéticas e que nascem do esforço coletivo de artistas, escolas e projetos sociais locais.
O Ballet de Londrina, companhia anfitriã do Festival, na celebração de seus trinta anos de trabalho ininterrupto, estreia a coreografia “Cinco”, primeira parte do programa “Humana Natureza”, que, com “Bora!”, traz uma inusitada reflexão a respeito da caminhada humana sobre o planeta – desde a origem da vida na água até o insuspeitado destino de seres flutuantes em relações líquidas, mediadas pela virtualidade.
Questionar a tecnologia e o nosso papel humano, entre dádivas e desgraças, aliás, parece ser a tônica deste tempo que chegou muito rápido e com o qual ainda não aprendemos a lidar. “Mercúrio” e o internacional “T para T” foram espetáculos gestados a partir do impacto da pandemia, a necessidade de reinventar a vida e as relações subjetivas na velocidade desta esteira cuja marcha os passos humanos não conseguem acompanhar. E agora?
Fazer perguntas, muitas perguntas, é o que nos ensina a educação desde a Paideia. Questionar com o corpo na plenitude de sua expressão é o que faz a arte, antes até. Continuaremos dançando contra as certezas e as ausências – que nunca foram tantas. E espalhando sementes da dúvida, do delicioso enigma que é estar vivo, exercitando sentidos e invenções.
Danieli Pereira
Renato Forin Jr.
Curadoria e coordenação do Festival de Dança de Londrina